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25/03/2013

journal BXVI

ficou ali alguns minutos, esperando tomar coragem para sair do carro e enfrentar o dia. sabia que assim que abrisse a porta, o tempo e a vida a engoliriam. o dia acabaria em um piscar de olhos e não teria realizado nem a metade dos seus sonhos. sabia que no instante em que abrisse a porta, deixaria aquele silêncio quente com cheiro de plástico para trás, e daria de cara com a solidão que a tomava por dentro, que o radinho a fazia esquecer. não era uma escolha fácil. não era uma escolha.

aquecendo as mãos na xícara de chá

sinto que a última gota de qualquer coisa que havia no meu coração acaba de secar. finalmente o vazio virou nada. a flor de plástico não pulsa, não seiva, não saliva mais. viro os olhos para fora. a temporariedade da existência torna tudo ridículo: o bigode bem cortado, o pirão de peixe, o salto alto e o batom fúcsia. de concreto, só a fome. sete reais e cinquenta centavos de fome. de concreto, só o arroz e o feijão que brotam da terra, de onde tudo veio, para onde tudo vai. incansáveis, buscam consertar as coisas. agendas político ambientais, econômicas e sociais, como se houvesse luz no fim do túnel. é o que chamam de esperança por um futuro melhor, que ninguém aqui vai ver. e ainda põem a culpa em pandora. retiro a gordura da carne, sustentando a hipocrisia da boa alimentação, que ninguém sabe qual é. um dia é o tomate e o azeite, no outro, o ovo e o chocolate. disseram certo, somente a beleza salvará o mundo, mas a beleza está nos olhos de quem vê, e por aqui estão todos cegos com suas convicções de pedra, quando na verdade, tudo não passa de nuvem.