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22/07/2012

journal DI


A viagem começou quando tudo dava errado e, horas antes do embarque, eu ainda nem tinha fechado a mala. 

Entrexames, dei meu sangue. Duas vezes. O líquido vermelho, quase preto, pingava da agulha, esperando para ser destrinchado em outras mil coisas pequenas que são o corpo. Fluido divino que corre e dá vida. Depois veio o eletro cardiograma. Meu coração é uma linha. Pulsa duas vezes para cima e uma para baixo. O médico era apenas uma voz arranhada atrás do biombo. Esperava um senhor gordo, de cabelos brancos e semblante grave, mas me apareceu um senhor baixo, com apenas uma barriga redonda, nariz de tubérculo, bigode amarelado e dois olhos grandes enquadrados por um fundo de garrafa. Como um personagem de Mary & Max. Tinha uma risada divertida e parecia doido. Sua assistente, uma mocinha bem novinha com cara de professora de primeira série também parecia doida. Me explicou o ritmo dos corações. Disse que o meu batia diferente, não era normal, mas também não era doença. Fiquei feliz. Quando me perguntou sobre meu cabelo, disse que era porque meu coração batia daquele jeito. Riu engraçado.

Aí, no último dia, tudo resolveu se resolver. O dinheiro entrou na conta, paguei minhas dívidas, imprimi todos os documentos, fechei a mala. Com um saco de remédios calmantes, realizei todo o ritual do medo. O avião tremia. Meu corpo, rígido e parado. Chegou a dar um choque depois que a tensão passou. A senhora sentada ao meu lado tinha cheiro de naftalina. Já estava com enxaqueca antes mesmo de levantar voo. Aquele cheiro de armário velho. Usava um conjunto verde pastel e segurou um terço durante toda a viagem. A luz que vem de fora é de cegar, mas o mar de nuvens é calmo. O problema é o medo. E tudo é dentro. A descida, a vertigem e a naftalina. Pouso. Quase choro tamanha alegria viver. Ainda no aeroporto de São Paulo encontrei um novo amor. Sou dessas. Mas ele sentou de costas pra mim. É assim a vida.

As pessoas tem umas caras tão desenháveis... o homem de sobrancelhas arqueadas: viver é um espanto. Já o americano balança os pés sobre a mala, ouvindo sua música em grandes fones de ouvido. É preciso desenhar rápido para que não me veja... HAHAHAHAHA definitivamente ele não é assim! É bonito, tem os olhos azuis, cabeça raspada e um cavanhaque loiro. Ao lado de um homem grande e ruivo está sentado um velho que dorme. O homem acorda no tempo de um desenho.

Mais atrás um pouco, um homem tão careca, tão adunco, tão alvo que parecia de outro mundo. Coincidentemente estava no mesmo hotel com seu romance. Já o meu amor ficou para trás. Cheguei a vê-lo buscando as malas, mas eu não existia para aqueles olhos. Tantas belas opções de companhia e eu fiquei com o velho gordo. É assim a vida. O amigo bonito e equivocado de outros dois belos e equivocados sentou longe e sozinho, enquanto os outros passaram a viagem falando essa língua estranha, meio bronca, que é o alemão.

Máquina mole de metal, treme-se toda no ar. É tão grande, tão pesada... é como se os rinocerontes voassem. Nuvens cortadas em linha na boca do metal. A cidade virou maquete e o medo passou. O velho sentado ao meu lado tinha cheiro de álcool. E a música me fazia pensar em todas as pessoas lindas que fazem parte da minha vida. Existe vida melhor que a minha? Façamos uma caipirinha!

O velho dormia... todos dormiam... aquela máquina flutuante era quase um sonho de metal...

Depois que o medo passou e voltou e passou e voltou e passou pela última vez, chegamos na terra das salsichas. Terra dos bosques druidas. Engraçado esse universo, seis meses lendo sobre os bosques sagrados e eis me aqui, emaranhada em um deles. Terra das gramíneas, das flores silvestres, das berries brotantes assim, como pingos de sabor, dos patos, do verde. Dos caracóis, lesmas, sapos e cogumelos. Terra dos vovozinhos e dos bebês.

Os patos nadam para lá e para cá, deslizantes. Todos cheios de si. O lago é um reino. Aqui os bichos falam alemão também. E os cachorros são ursões. Eu queria alguma coisa para desenhar que não fossem as plantas. As plantas são muito difíceis de se apreender em linhas sem cor. O bosque sagrado também não se revela na fotografia profana. Aqui o ar é bom. É fresco e verde também. Um vovô com óculos de esqui me pergunta alguma coisa em alemão. Língua dura. São anos de dureza. Uma história inteira de dureza que criou uma casca nesse povo que é tão mole por dentro. É por isso que comem muitas salsichas. Queria saber se minha inspiração tinha acabado... Disse-lhe que pelo contrário, estava mesmo era tomando um ar, cansada de tantas idéias. Os patos, assim como as pombas, os bebês e vovôs, também gostam do sol.

Em Garmisch, além das flores, das berries, dos patos e das lemas, também tem montanhas. Dessas grandes de cartão postal, como se tivessem feito recortes de revista e montado uma paisagem: campos de flores silvestres, dessas que nascem sei lei nem documento, brotando cada uma em seu lugar, numa iquebana das mais refinadas. Comendo as flores subversivas estão as ovelhas. Todas balindo em um coro feliz. Algumas árvores pingam aqui e ali, e casinhas de madeira com lenha empilhada ao lado afundam, rodeadas pelas paredes pedregosas confeitadas de neve. E o bosque druida. Foi isso que eu guardei.

O primeiro trem era um comboio de retirantes. O segundo percorreu paisagens paradas. Todas as paisagens alemãs são paradas. Não-mais-tempo.

Munique entrou para a lista de cidades em que eu moraria. Pequena cidade grande ou grande cidade pequena. Daquelas que dão maior ansiedade: as cidades grandes anseiam não caber, as pequenas faltam caber, as grandes pequenas grandes jogam para lá e para cá com o nosso querer viver. É preciso muita firmeza de espírito para aguentar. Eu falo, mas não sei se tenho a estrutura.

Em Munique eu me apaixonei 10 vezes. Duas por mulheres. Foi engraçado reconhecer alguns telhados, curvas e espaços... mas tudo era de alguma maneira diferente, como se eu fosse uma outra pessoa, e sou, ainda que a mesma.

Conheci os anonimos que constroem o mundo sem saber. Uma ignorância que parece inocente. Sei que no fundo tudo é corrompido. Guardei para mim a revelação.

Eu olho para as pessoas e tenho vontade de viver uma grande história de amor com cada uma delas. Mas que história é essa que nem eu consigo contar?

Parto sozinha em uma manhã vazia de gente e cheia de azul crepúsculo. Algumas luzes piscantes e dorminhocas, e o vento frio. A pomba, também sozinha, cantava o amanhecer encolhida em um telhado. “Leve apenas o que conseguir carregar” a frase me gritava. O problema é que sempre cabe mais um sapato.

O terceiro trem era silencioso. A falta da noite começou a bater. O homem ao lado coçou os olhos como uma criança... o sono é mesmo um sopro de inocência. Uma nuvem cobriu todo o caminho, transformando a viagem em um sonho embalante.

A primeira pessoa que conheci em Nürnberg foi o Aladin. Bosniano simpático. Vai ficar na cidade por dois meses trabalhando durante o verão. Não pensa em voltar para o seu país. Quer viver sua história de amor em Berlim.

Antes das nove da manhã, um doido já balbuciava coisas para mim na padaria. Depois de uma caminhada, a bolsa pesada me fez voltar para o hotel e esperar a hora do check in observando meus colegas.

A árvore brotava sozinha no meio do rio. O homem cantava sozinho o hino de um reino antigo. Todos o olhavam como um louco. Mas era um gênio!

Nürnberg é o lugar com mais belezas por metro quadrado que eu já visitei. Quero casar com o garçom do café. Abrirei um cinema, farei a feira nos sábados, e no domingo darei comida aos patos, vivendo uma vidinha feliz.

A cidade vai se desdobrando, uma rua após a outra, como as páginas de um livro. Em cada esquina uma surpresa. My irregular heart beats. O mercado tem cheiro de açúcar, olivas, pão, salame e lavanda. 

As flores são em bola e os cataventos, prateados.

Aqui tudo acontece ao mesmo tempo. O casamento italiano, o programa de culinária e as cabras, os bodes e as ovelhas. Peludos e fedidos. Quero todos.

Aqui também acontece o amor, como sempre. As pessoas entram e saem de mim como se eu fosse um trem. Descobri como dói ser trem. E aqui elas também vão embora dentro de vagões. Rapidamente a linha some no ponto de fuga deixando apenas um rastro de saudade. As lágrimas, românticas e impetuosas, subiram como uma onda. Um sentimento bobo as trancou na garganta. Desaguei silenciosamente com os horrores do holocausto, mas logo em seguida um vovozinho otimista me deu uma aula de esperança sobre a humanidade e eu voltei a acreditar.

Os caminhos dessa vida são tantos... se cruzam e descruzam tantas vezes... damos voltas, voltas e mais voltas até encontrar o que procuramos... O que é meu está guardado. Saberei contar a minha história de amor quando ela acontecer.

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